15 novembro, 2011

A última gota de um choro sem lágrima



Ismael estava em sonhos. Acordado e de olhos bem abertos tentando mirar o que está por detrás das nuvens, para lá do horizonte. Estava em sorrisos, soltos e desmedidos. A imaginação deixava-o finalmente rir. Pela primeira vez em sua vida Ismael carregava os seus sonhos e a sua carne e deixava-se transportar para onde o divino o quisesse levar. Para lá da linha que a vista alcança sentia-se como flor em dia inaugural de Primavera. Fresco, tenro, a desabrochar.

Assim se sentia Ismael naquela hora que devia ser de tristeza. Ele que nunca sentira o ardor dos raios de nenhum sol ferir-lhe as vistas. Ele que, até essa data, nunca conhecera o branco das nuvens manchando o azul dos céus, apreciava finamente os sabores das cores e os cheiros dos ventos. Ganhara naquele dia a coragem necessária.

Ismael sempre tivera medo de enxergar o desconhecido. Por tradição, ou deformação de família, habituara-se a não sonhar para além daquilo que as pernas pudessem alcançar. Desde sempre cumpridor dos deveres herdados nunca se atrevera a olhar para lá das próprias pestanas. Maria dos Milagres, sua companheira, a quem amava fielmente desde tenra idade, sempre lhe pedira que contemplasse o mundo à sua volta. Que a olhasse, que lhe notasse as curvas de mulher bem bordada e melhor tratada. Ele sempre recusou. Assim ele poderia apaladar Maria pelos atributos da alma e afastar do corpo o pecado de querer saborear a beleza de outras mulheres.

- Observa então a beleza das montanhas, do céu, do mar, das aves.
Pedia-lhe enternecidamente Maria dos Milagres.
- Não quero.
Insistia Ismael.

Era o modo que ele encontrava de se sentir feliz no lugar que a vida lhe havido destinado. Assim, estaria livre da vontade de partir em busca de outros mundos.

Nesse viver se entrelaçaram durante uma vida. Ele mais em felicidade e ela em maior contenção de desejos. Maria sempre soube ter a virtude de respeitar a herança do marido. Mas como mulher queria sentir nele o fogo do olhar, a chama do desejo provocada pelo rastilho da figura. Queria que ele a olhasse e saboreasse com as vistas.

- Ismael, porque não me olhas com vistas de homem acordado? Como hei-de saber se meus contornos são ao teu gosto? Como hei-de saber se me achas bonita? Questionava-o Maria mais em súplica que em pergunta.
Ismael sempre lhe respondia o mesmo:
- Para mim estás como ontem e igualzinha estarás amanhã e depois.
- Mas parece-te que isso me basta? Que me sustentam o desejo essa meia dúzia de palavras já gastas? Como posso eu saber porque me escolheste? Como posso saber se sou a mais bela que conheceste?
- Maria, foste tu que me escolheste e não eu a ti. Sabes que não conheço diferença entre o feio e o bonito. Sabes ainda que outros desejos não sei ter. Como podes então duvidar que sejas para mim a mais bela?

A esposa fingia-se satisfeita com a resposta e assim se encerrava em temerosos pensamentos. E se o vento a levasse, em primeira escolha, para dentro da boca da terra? Pior ainda, e se lhe roubasse o viver em momento impróprio? Ismael poderia ter ainda garras para romper e suores de paixão para derramar. Iria ele nessa altura deixar-se cultivar e colher por uma outra qualquer? Ismael sempre lhe adivinhava os pensamentos. Quem não vê as imagens do corpo lê melhor as mensagens da alma.

- Maria, assim me conheceste e assim me hás-de levar à cova. Não te apoquentes, para mim serás sempre a mais bela e não hei-de querer outra.

O casamento havia de ser até ao último dia de uma das suas vidas. O altar pedira-lhes juras de amor verdadeiro, na saúde e na doença até que a morte tratasse da separação. Por crenças e vontades assim havia de ser e assim foi. Mais cedo do que esperado, a doença tratou de se intrometer entre aqueles dois viveres que afinal eram um só. Uma doença rara e sem cura experimentada, forte na dor e medonha no avanço. Em menos de sete dias tratou de dar motivo às consumições de Maria dos Milagres. A morte iria levá-la e deixaria ficar Ismael.

Dizem os que viram que, antes do último ai, Maria teve ainda tempo de arder em dor. Via-se nos gestos e no olhar. Diziam que apesar do sofrimento não vertia lágrima nem gemido. Soube-se depois que guardava todas as forças para as vésperas do derradeiro suspiro. Quando Maria sentiu chegar o famigerado momento, chamou Ismael para mais juntinho de si e mais em suspiros que em palavras, sussurrou-lhe:

- Ismael, fica sabendo que de nada me arrependo. Sempre te amei e respeitei e sempre vivi em alegria sendo parte de teu viver. Agora que me vou basta-me ouvir as palavras que sempre te pedi para que morra em felicidade.

Ismael, que lhe lia os pensamentos muito antes que ela os pressentisse, adivinhara já aquele momento e durante a última noite estivera a preparar-se para a ocasião. Maria dos Milagres poderia não ter tempo para um segundo pedido e nem sequer para esperar pela resposta. Ao final de uma vida, a dela, Ismael sentia-se preparado para abrir os olhos e mirar para além das suas próprias pestanas.

Em esforço o fez, um de cada vez, e quase sufocou com a beleza que lhe entrava pelas cavidades ópticas. Maria era ainda mais bonita do que ele pudera imaginar. Maria dos Milagres, ao vê-lo olhando para ela, ao sentir-se observada pelo amor da sua vida, ganhava brilho nos seus próprios olhos e às portas da morte sentia-se a renascer por dentro. Ismael, depois de afastar o sufoco, proferiu então as palavras que ela tanto queria ouvir e que ele por tantas vezes lhe queria ter dito:

- Maria, eu bem te dizia que eras a mais bela. És a mais bonita que alguma vez conheci.

Ela apenas teve forças para se deixar ouvir esta última frase. E agora, acto consumado, o último suspiro a levava para a morte. Nesse momento, já sem dor e mais morta do que nunca, deixou verter a única gota que alguma vez lhe escorrera pela face. Para lá das portas da morte Maria chorou de alegria.

Nessa hora, de olhos bem abertos, Ismael mirava já o que está por detrás das nuvens, para além do horizonte.

Dizem os que viram que Ismael se aproximou do corpo e se deitou a seu lado. Beijou Maria dos Milagres e lembrou-lhe as juras de amor eterno. Depois, em último gesto, deixou-se morrer e partir com ela para onde o divino lhes quisesse levar as almas.

Dizem os que estiveram presentes que os dois partiram juntos e em risos, soltos e desmedidos.

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